Num ponto ínfimo: eis o diamante intemporal. Possante. Agregador. O seu brilho entra-nos pelo sangue fora para as zonas onde a escolha não é possível. Domina. Sobrepõe-se. Transborda para as moradas onde se ocultam as ciências do mundo, abre-lhes portas insuspeitas. Ciências novas. Artes trabalhadas. Recomeça mundos devastados por apelo a uma nobreza antiga. Esta é a sua grandeza. O seu desígnio. Pressente as ávidas presenças. Enche todo o nosso espaço duma inocência fundadora. Explode, então, para fora, ilumina, aquece, incendeia. Transborda. Permanece quando invocado, quando intensamente invocado. Para depois voltar ao coração da pedra, onde, para sempre, produzirá a cintilação extrema.
Neste passo (falta a publicação de um texto, num total de 50), peço aos meus visitantes internautas uma opinião sobre o que poderá, um dia, tomar a forma de livro.
Agora, as vozes. Os gestos tão quotidianos. As presenças que pairam. 1 - Um canto, um assobio, uma palavra nova. As onomatopeias da terra, a estrita concisão. O pio, o grito, o assobio, às vezes o lancinante silêncio. O chamamento. Os nomes, poderosíssimos. A vida ciciada, os passos nocturnos, uma dor que geme. A flor dos domingos. O predicativo sangue. 2 – A faca oficiante. A cesta, símbolo pujante das húmidas alvas. A fome da vida, jamais saciada (os animais que esperam pela hora quente). As mãos súbitas, precisas, as mãos consoladoras. A revelação de uma arte ínsita, que é a arte das coisas menores. O impulso produtivo, o olhar longo, os árduos estribilhos da terra. A mão pelo rosto, o olhar para dentro. 3- A porta entreaberta aos verões antigos. O que pulsa na presença inteira, a sua decifração pelos modos de estar. O bordado paciente. As uvas que pendem. A mesa que reúne. Os signos do nosso definitivo alfabeto, que excluem o tempo.
As vozes; os gestos; as presenças: toda a simbologia é uma arte de morrer devagar.
O apelo é fortíssimo. Vem da penumbra interior, da porta entreaberta, da pose que há-de ser a possante imagem dum amor maduro. Dum amor caldeado em distâncias incríveis. Dum amor que possui a chave para as áridas distâncias. Do próprio amor distanciado. O apelo está nas vozes tutelares: que desvendam, apaziguam, justificam; está na penumbra, na porta que agora se abre à luz definitiva; está na exposta inocência duma idade de ouro que carregamos, ainda por amor. Está na reunião dos caminhos que atravessam de lado a lado a exaltação das fontes. Esses caminhos agora desvendados. São eles a respiração vibrante da casa que nos recebe. Por isso os amamos. Porque confluem. Porque divergem. Porque sabem do nosso ofício de peregrinar. Porque, fundadores, nunca nos levam definitivamente
As nítidas ombreiras. O risco irregular da cal, a exaltação do encontro. É neste ponto que se abre, dolorosa, a ferida crucial. É na cal contaminada. No verdete da chuva que se impregna e escorre. Lentamente, o verdete, o fungo nas madeiras nobres. Nas almas acossadas. Já houve aqui auroras permanentes que não souberam permanecer. Já houve aqui silêncios como os da terra, fundos e cheios de significado. Já houve admiráveis vozes que diziam tudo, mesmo o indizível que nos serviu de alimento comum. Já houve radicais belezas a passar pelos rostos, altares de alegria, rosas madrugadoras, festões de luz imaculada. A pedra exausta guarda ainda a presença dessas horas felizes. Num ponto ínfimo e descontaminado. Apesar da cal dolorosa, do verdete da chuva, das almas onde a evidência corrói toda a fundada esperança.
Começa agora a apropriação das fórmulas (o mito requer, aliás, a fórmula pura, é o momento expurgatório das outras verdades). Um pronome repete à exaustão o agudo momento da perda. Revisitamos o mundo com o olhar para dentro – e é dolorosa a apropriação alheia dos espaços reservados. Afinal, há caminhos inversos que nos esperavam há muito.
Começa agora a apropriação equívoca das fontes. A palavra, o momento, a grata recordação reservam-se para uma exposição que é mundana, e fere. As nossas almas reclamam o salário de um amor profundo, quantas vezes à distância de uma estranha renúncia – e as letras desse alfabeto maldito são o lume onde ardem as palavras antigas.
E há as paredes. Cegas. Maciças. Asfixiam. Contra a cal. Geram o poderoso impulso da liberdade. Quebramos contra elas cristais momentâneos. Babam-nos de feroz salitre, de impotência surda. Confundem-nos porque não explicam. Não abrem. São sugestivas para dentro, num sentido concêntrico. Impedem os outros lugares. Sugerem-nos, com a resistência bruta que lhes opõem. Aqui só a liberdade. Contra elas só a liberdade. Só o pensamento alodialmente feroz. Livre e feroz, bruto e feroz, tomado da ferociddae que arranca luz dos medos fundos. Aqui só a inteira humanidade que se alimenta do sangue fundador. Contra elas opomos caminhos abertos a pulso pela humanidade e pela liberdade. Pela condição primeira do pacto ôntico, pela humana sujeição ao sopro criador. Fazem-nos, as paredes. Cegas. Maciças. Impedem. Fundam, paradoxais, a liberdade.
Abre-se, pois, essa flor conjuntiva. Procura os lugares onde a vigorosa pulsão da vida cria sóis instantâneos. Um é junto ao lume, compreende o alimento, o fogo, as harmonias. É onde ferve a água lustral das comunhões, onde o antes e o depois são confinantes, onde a presença é um ouro preservado. Outro, conduz ao íntimo da casa, à secreta, lenta, permanente fábrica dos sonhos, ao labor uterino da vida. Fecha-nos. Remete as distâncias para a mera geografia da matéria, porque impede e circunscreve. E porque, pacientemente, lapida no sangue o diamante intemporal. Antes, outro ainda, é o lugar desencontrado das premências. É onde rui, definitivamente, o dique das emoções, onde desaba toda a sofreguidão das torrentes. É um lugar que remete e antecipa, que mílímetro a milímetro nos devolverá a identidade inteira. Aí, mais tarde, sob um céu de ramas ancestrais, serão as palavras o selo que se quebra.
A jarra é de sécias dessa manhã. Ainda tocadas pelo halo quente da noite. Ainda virgens, ainda indecifráveis, ainda encharcadas de orvalho e vagar. Elas centram o mundo, dispõem-no para o que chega em coordenadas puras, assim definindo os domínios consagrados. Agora é tudo para dentro. O dom da palavra é para dentro. A fabulosa interacção do sangue, a explicação dos sítios, os passos medidos, o núcleo primitivo, são para dentro. Alguém há-de cantar. Dentro do silêncio.
Uma a uma as portas fecham-se. Delimitam do espaço interior o caminho que finda. A sua função congregadora é-nos familiar e propícia. Abrem para dentro. Preservam. Recriam o nosso íntimo universo, de cujo centro parte a luz irradiante.